imagem: Paulo Wrencher
Nelson Rodrigues disse, certa vez, que
o Fla x Flu surgiu 40 minutos antes do nada. O clássico do último domingo, para
mim, se iniciou há alguns meses. Começou num diálogo entre dois sujeitos que
resolveram se enveredar por algo em extinção, o caminho das crônicas, da
literatura, do romantismo e da boêmia, tão presentes em décadas atrás, mas que,
hoje, foram ultrapassados por atributos pertencentes a um mundo cada vez mais
voltado para a velocidade, para a técnica e tudo que ambos, de certa maneira,
têm aversão.
Agora, ponha-se em meu lugar. Imagine
você, aos 23 anos, estudante de jornalismo, acompanhado do seu melhor amigo, a
quem pregou a alcunha de Maior Irmão Disparado, na cidade maravilhosa, para
estudar os gênios da raça Mário Filho e Nelson Rodrigues, tomar um sol,
degustar algumas bebidas, aproveitar a noite carioca e assistir um clássico da
estirpe de um Flamengo x Fluminense. Acrescente a isso o começo da realização
de um sonho, no qual o intuito é relatar as maiores tragédias dos rivais da
Guanabara e, antes de tudo, recuperar uma linguagem que agoniza no jornalismo
esportivo, sem se importar com regras, projetos e tudo o que os dias hodiernos
impõem para manter o abominável padrão.
Imaginou? Pois, insisto, ponha-se em
meu lugar.
Pense em dormir em São Paulo e acordar
no Rio de Janeiro, onde o tempo parece seguir o seu próprio ritmo, numa leveza
e calmaria dignos de paraíso. Some o fato de o dia ter começado às 6h da matina
e, após alguns minutos, você se vê num mergulho em que é possível sentir o
gosto da saborosa liberdade e, nos seus olhos, a imagem do horizonte que parece
infinita, numa manhã que passara na velocidade e na pausa da fala daqueles que
recitam um poema para amada.
Pois bem, além de tudo isso, acima de
sua cabeça, o sol, o mais eficiente dos despertadores daqueles que madrugam,
reina em absoluto, num céu abençoado por um Cristo que, de braços abertos,
recebe a todos com uma satisfação incólume. Já habituado, você descobre que
nasceu para morar ali, mas, no instante seguinte, percebe que deixou uma vida,
uma carreira, uma profissão e um sonho, que se tornara, naquele momento,
pesadelo para trás. Daí, inevitavelmente, promete que um dia irá voltar. E,
dessa vez, torce e deseja muito, será para ficar.
Tomados por uma imensa alegria, você e
seu amigo, vão ao encontro daquilo que seria uma obrigação. Mas, convenhamos,
desde quando procurar e ler crônicas dos irmãos Mário e Nelson é um fardo? Sim,
meus caros, esse é o preço que se paga quando se mistura trabalho e diversão.
O tempo passa numa lentidão saborosa e
os dias se vão numa alegria que se contradiz com a iminente volta. Após passar
por Copabacana, parar na Biblioteca Nacional, dar um pulo na Gávea e ir à
apaixonante Lapa, nos restava assistir ao mais esperado jogo, para mim, dos
últimos tempos. Era a oportunidade de acompanhar as duas torcidas de perto,
sentir suas emoções e se inspirar para o que vem pela frente: escrever.
Portanto, indago-lhes se isso não é
felicidade, pois se não for, nem quero que me apresentem a ela.
O domingo começa cedo. O mar, o clima e
o calçadão eram convites à inspiração. E daí se explica o porquê do surgimento
de tantos gênios das letras no lugar que é sinônimo de perfeição. Com a maioria
dos deveres cumpridos, os garotos partem ao Engenhão para o clássico. No
caminho, até o que deveria ser normal espanta. Torcedores de Flamengo e
Fluminense indo ao estádio, lado a lado, em extrema harmonia, com gozação, sem
violência e com admirável respeito.
Já no estádio, o espetáculo das
torcidas é inigualável. Quando os escretes sobem ao gramado, uma energia toma
conta e os gritos das nações parecem ecoar pela cidade, pelo estado e por todo
o Brasil.
Na arquibancada, os amigos assistem,
impactados, o conjunto de fatores que tem tudo para terminar em uma obra prima.
Do céu, os irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho se sentam, um junto do outro,
para acompanharem a partida que, por anos, fora a mola propulsora de seus
incontáveis e incomparáveis textos. A magia presente, parte dos objetivos
realizados e a manutenção de um sonho que, como todos os outros que envolvem os
meninos, dará certo no final.
E se o primeiro tempo valeu pelo show
proporcionado nas arquibancadas, nas quais a torcida do Fluminense, com o
tradicional pó de arroz e a do Flamengo, com os cantos que fazem parte da
história do clube, ensinavam o que é torcer e vibrar de verdade, a segunda
etapa reservaria uma benção divina. O Cristo Redentor, imponente, a tudo
acompanhava. Já os deuses do futebol entraram em campo e fizeram daquele jogo
histórico, com o time de Nelson Rodrigues jogando melhor, em vantagem no placar
por duas vezes e com o rival, time de Mário Filho, valente, embalado pelo som,
uníssono, que surgia a cada ataque, “Oh, meu Mengão, eu gosto de você. Quero
cantar ao mundo inteiro a alegria de ser rubro-negro. Vamos para cima, Mengão.
Acima de tudo rubro-negro”. A sintonia time-torcida passou a existir e o que se
viu foi uma virada, nos minutos finais, do jeito que o flamenguista gosta,
épica. A energia era encantadora.
Ao fim da partida, enquanto Danilo e eu
éramos, somente, alegria por tudo que vemos e vivemos, lá de cima, Mário Filho,
ao lado do irmão, Nelson Rodrigues, era só sorrisos. Assim, como a maioria do
Brasil.